A educação pública em Feira de Santana: entre o passado e o futuro
Por Antônia Almeida Silva
Escola Normal - antiga Escola J.J. Seabra - atual Cuca
Crédito: Memorial da Feira
Já é amplamente conhecido o fato de que, mesmo depois da Proclamação da República, faltou ao país um projeto de educação escolar nacional, pois o tema continuou a cargo das unidades da federação. Na Bahia, medidas mais efetivas de interiorização foram muito pontuais e atravessadas por duelos políticos, sobretudo entre os grupos que atuaram a serviço da proteção de interesses oligárquicos e adjacentes. Como bem documentou René Dreifuss, em seu livro "O jogo da direita", a elite política nacional tem como marca registrada o constante realinhamento político conservador, escorado na intervenção corretiva, geralmente administrativa. Nesse bojo é que podemos situar o ideário da modernização do país, em plena expansão desde as décadas iniciais do séc. XX, como terreno fecundo para a associação entre os objetivos de civilizar e instruir e o desenvolvimento econômico, embora isto não se fizesse acompanhar de investidas para a superação das hierarquias sociais e a desigualdade, pois as massas de despossuídos estiveram sempre em mira, como objetos de medidas de controle e intervenção corretiva.
Sem a pretensão de fazer, aqui, uma abordagem histórica, recorro a esse registro apenas para demarcar que o passado, embora não tenha o poder mágico de explicar o presente, pode oferecer pistas importantes sobre as racionalidades instituídas e os traços de conservação das práticas políticas que vêm modelando a educação pública no Brasil, tomando Feira de Santana como caso exemplar. Assim, acompanhando os movimentos locais, verifico que transcorridas algumas décadas desde que a educação foi definida como direito de todos e dever do Estado, os sistemas de ensino (estadual e municipal) ainda são devedores do equilíbrio entre a expansão do acesso e a democratização efetiva da educação às camadas populares, o que requer a superação da desqualificação do trabalho docente, a garantia das condições materiais de trabalho, o delineamento de projetos pedagógicos que tenham em conta as diferenças linguísticas e culturais, de modo a repensar a escola tendo em vista as relações sociais mais amplas, entre outras iniciativas.
Esse desequilíbrio certamente não tem determinação única, assim como também não independe dos contornos sociais e políticos que envolvem o município. Contudo, é possível identificar alguns pontos de estrangulamento que repetidamente se mostram em planos que se tocam: a pobreza galopante, a descontinuidade das ações entre uma gestão e outra (às vezes na mesma gestão), a falta de planejamento de médio e longo prazo, a centralização das decisões, a desvalorização dos profissionais e as precárias condições de funcionamento das escolas, com exceções que confirmam a regra.
Não por acaso, o projeto de universalização do direito à educação é constantemente atravessado pelas chamadas "Reformas do Ensino", prática não só corrente para demarcar a mudança de governo, mas para alinhar os direcionamentos educacionais ao imaginário de renovação. Sim, algumas palavras têm o poder de evocar valores positivos, embora não passem de retórica vazia ou, na maioria das vezes, truques para encobrir os reais interesses em jogo. Reforma é uma dessas palavras que remete a inovar, conduzir ao progresso e melhoria da realidade, sobretudo quando associada à educação. Por essa lógica a educação escolar tem sido reiteradamente objeto de constante afirmação retórica como direito de todos e ferramenta para a promoção da igualdade, embora na prática se constitua como expressão das dicotomias sociais: de um lado a educação para formar dirigentes e, de outro, a educação para disciplinar mentes e corpos, subordinando-os às demandas dos poderosos.
Temos muitos exemplos que ilustram isto, mas vou me ater aqui a apenas dois: a adesão mecânica dos sucessivos gestores públicos a projetos efêmeros; o esvaziamento das experiências coletivas de construção da agenda de políticas educacionais para o município, articulando os Planos Nacional, Estadual e Municipal de Educação. No primeiro caso é simbólica a prática de convênios com agências privadas de naturezas diversas (empresas do ramo produtivo e empresas de assessoria pedagógicas), que tem incrementado programas que dão visibilidade à chamada Responsabilidade Social Empresarial, ao tempo em que propagam seus produtos ou se beneficiam de recursos públicos para realizar ações perfeitamente realizáveis por servidores de carreira, desde que em número e formação adequados. No segundo caso, o exemplo mais eloquente é o pouco caso com o Plano Municipal de Educação. O Plano não era para ser um mero protocolo, mas nas mãos dos governos mais preocupados com os dividendos imediatos do que com um projeto social de largo espectro, caminha a passos lentos em suas diretrizes mais caras e chega a ser ignorado em frentes como a valorização dos profissionais da educação. Escolas com equipes reduzidas de limpeza, de cozinha e de docentes não são incomuns. A terceirização dessas equipes ainda é parte da moeda de troca circulante entre padrinhos e apadrinhados.
A criança "descuidosa de sua beleza", de que nos fala o hino à Feira, não nos parece ser um problema da criança, mas dos cuidadores que operam desmazeladamente com aqueles e aquelas a quem querem manter dependentes de benesses, mascarando direitos sociais de atos de filantropia/assistência com fins políticos escusos. Cabe notar, contudo, que essa não é uma criança genérica, mas aquela da classe popular, em suas feições étnicas diversas, mas, principalmente negra, não por indisposição, mas por escolha política daqueles que, para protegerem seus privilégios, esconjuram a maioria da população à mera correção.
Não há crise do ensino ou da educação, o que há é falta de investimento e a reprodução de um ciclo perverso que combina marginalização social a esvaziamento da agenda educacional. O jogo da direita está em campo, resta saber até quando!
Antônia é professora do Departamento de Educação da UEFS
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