Terremotos na Turquia e na Síria geram medo de guinada ainda mais autoritária
Em Ancara, a resposta à catástrofe deve influenciar o desempenho do presidente Recep Tayyip Erdogan
Não bastassem a devastação de cidades e a morte de milhares de pessoas, o terremoto na Turquia e na Síria disparou o alerta para a possibilidade da implementação de medidas autoritárias nos dois países.
Em Ancara, a resposta à catástrofe deve influenciar o desempenho do presidente Recep Tayyip Erdogan nas eleições marcadas para 14 de maio. Nos últimos anos, ele perdeu apoio popular, em parte devido aos impactos da crise econômica no país, com alta no custo de vida agravada pela Guerra da Ucrânia e pela pandemia de Covid. Em outubro, a taxa anual de inflação atingiu 85,5%, o maior índice em 25 anos.
Pesquisas de intenção de voto indicam que a disputa será apertada, no maior teste para o presidente turco em duas décadas no comando do país -embora ainda não tenha anunciado oficialmente a candidatura, ele vem sinalizando a intenção de concorrer a um novo mandato.
Agora, a catástrofe ocorrida na madrugada de segunda-feira (6) aumentou a pressão sobre Erdogan. O governo tornou-se alvo de críticas em razão da resposta lenta às consequências do sismo que já deixou mais de 20 mil mortos, desencadeando raiva e frustração em parte da população.
Autoridades turcas, por sua vez, atribuem os atrasos em ações de resgate em regiões próximas à Síria às tempestades de inverno que impedem o tráfego em rodovias e a entrega de alimentos e de ajuda humanitária.
"A primeira dúvida é se as eleições vão acontecer em 14 de maio. Não será uma surpresa se o governo prolongar o estado de emergência e suspender o pleito", afirma Imdat Oner, analista político do Instituto Jack D. Gordon, ligado à Universidade Internacional da Flórida, e ex-diplomata turco.
Logo após a tragédia, Erdogan decretou estado de emergência por três meses nas dez províncias atingidas pelo tremor. Ao anunciar a medida, criticou adversários que, segundo ele, tentam colocar as pessoas umas contra as outras em meio ao caos por meio de "notícias falsas e distorcidas".
O recado aumenta o temor de decisões autoritárias e de cerco à oposição. O turco Karabekir Akkoyunlu, professor de política e estudos internacionais da Escola de Estudos Orientais e Africanos, que faz parte da Universidade de Londres, tem avaliação semelhante à de Oner, de que a Turquia pode enveredar por um caminho mais autocrático em meio ao período eleitoral.
Diante do que chama de discursos polarizadores, ele diz que a reação de Erdogan após uma eventual derrota no pleito de maio é imprevisível. Akkoyunlu lembra que o líder turco assumiu o cargo de premiê em 2003, quase quatro anos após um terremoto de magnitude 7,6 que matou mais de 17 mil pessoas.
À época, a tragédia inspirou um desejo de mudança no país, e as legendas que estavam no poder foram varridas do sistema político, o que beneficiou o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), de Erdogan. Agora, segundo Akkoyunlu, o presidente fará de tudo para evitar comparações entre os dois momentos.
"Pessoas que fazem esse tipo de crítica já estão sendo ameaçadas juridicamente", afirma o professor, citando o caso de Özgün Emre Koç, cientista político detido para prestar esclarecimentos após fazer críticas à resposta do governo aos terremotos. Segundo a imprensa turca, Koç foi indiciado por incitação ao ódio e à hostilidade. "Quando existe um movimento popular contra o governo e percepção de perda do controle, esse tipo de método coercivo fica mais evidente".
Em 20 anos de poder, Erdogan é acusado por críticos e opositores de erodir a independência do Judiciário, corroer a liberdade da imprensa e enfraquecer o respeito aos direitos humanos no país.
Em 2017, o líder turco alterou a Constituição para mudar o sistema de governo de parlamentar para presidencial. Segundo analistas, a medida abriu a prerrogativa para que Erdogan emitisse decretos, regulasse ministérios e removesse funcionários públicos sem precisar da aprovação do Parlamento.
Nas eleições de 2019, determinou a recontagem de votos após o candidato do partido governista perder a disputa municipal de Istambul. Ainda que o resultado tenha sido mantido, o episódio, segundo analistas, minou a credibilidade do sistema eleitoral turco.
Considerado polarizador, Erdogan continua apoiado por parcela significativa da população turca, sobretudo a ala muçulmana mais conservadora. Em dezembro, levantamento do instituto turco Metropoll apontou que 45,2% da população aprovava seu governo, contra 52,1% que desaprovava.
Já o ditador sírio, Bashar al-Assad, convive com a guerra civil que devasta o país há 12 anos. Na luta contra grupos rebeldes, recebeu o apoio de Rússia e Irã. Mas, nos últimos meses, viveu um isolamento devido a outras prioridades dos aliados: a Guerra da Ucrânia, para Moscou, e a onda de protestos em Teerã desencadeada pela morte da jovem curda Mahsa Amini, presa pela polícia moral por supostamente desrespeitar as regras de uso do véu islâmico.
Para Oner, do Instituto Jack D. Gordon, a tragédia provocada pelo terremoto deve reaproximar Vladimir Putin e Assad, e o ditador sírio deve usar o contexto de recebimento de ajuda humanitária como instrumento para pressionar pelo fim das sanções impostas por países do Ocidente devido à guerra civil.
Nesta semana, os esforços de assistência à Síria foram motivos de tensão. Embora tenha dito que os auxílios serão destinados a "todos os sírios, em todo o território", o embaixador do país na ONU, Bassam Sabbagh, impôs a condição de que a distribuição da ajuda humanitária seja feita pelo regime.
A questão é que províncias como Idlib, reduto ao norte do país controlado por rebeldes e jihadistas, não mantêm pontes com Damasco. Quase todo o auxílio que chega à área hoje vem da Turquia e passa por Bab al Hawa, ponto de acesso criado após uma resolução das Nações Unidas -e que tanto para Damasco quanto para Moscou representa uma violação da soberania síria.
O terremoto movimenta ainda o xadrez político no Oriente Médio. Entre os países que manifestaram o desejo de ajudar a Síria está Israel, um rival histórico. Karina Calandrin, coordenadora de projetos do Instituto Brasil-Israel, aponta que a iniciativa pode ser o que se chama de cortina de fumaça, para mostrar à comunidade internacional "o lado humano" do governo de Binyamin Netanyahu, que lidera a coalizão mais à direita da história do país, alvo de críticas por polêmicas protagonizadas por ministros extremistas.
"A Síria já invadiu Israel três vezes, e Israel anexou parte do território sírio, as Colinas de Golã. E Damasco negou ter pedido a ajuda prometida por Israel", pondera Calandrin.
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