Número de refugiados venezuelanos explode na fronteira brasileira
Atualmente, a fronteira está aberta do lado brasileiro, mas não no da Venezuela
Com o agravamento da crise econômica e social na Venezuela, o fluxo de cidadãos venezuelanos para o Brasil cresceu maciçamente nos últimos anos. Entre 2015 e maio de 2019, o Brasil registrou mais de 178 mil solicitações de refúgio e de residência temporária. A maioria dos migrantes entra no País pela fronteira norte do Brasil, no Estado de Roraima, e se concentra nos municípios de Pacaraima e Boa Vista, capital do Estado.
Para acolher parte dessa população, 11 abrigos oficiais foram criados em Boa Vista e dois em Pacaraima. Eles são administrados pelas Forças Armadas e pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR). Mais de 6,3 mil pessoas, das quais 2,5 mil são crianças e adolescentes, vivem nos locais. Estima-se que quase 32 mil venezuelanos morem em Boa Vista. Projeções das autoridades locais e agências humanitárias apontam que 1,5 mil venezuelanos estão em situação de rua na capital, entre eles, quase 500 têm menos de 18 anos de idade.
O número de venezuelanos desabrigados em Pacaraima, cidade no estado de Roraima, na divisa com a Venezuela, explodiu -já são 4.015, alta de 243% em relação a maio, mês anterior à reabertura da fronteira.
Segundo levantamento da Organização Internacional para as Migrações (OIM) referente a agosto, entre os desabrigados há 2.065 migrantes e refugiados do país vizinho dormindo nas ruas do município de 18 mil habitantes -seria como se a cidade de São Paulo tivesse 1,32 milhão de refugiados vivendo nas calçadas.
Há, ainda, 1.695 em ocupações em espaços públicos e 255 em locais privados cedidos. Os dois abrigos da Operação Acolhida, liderada pelo Exército, estão lotados, de acordo com a Casa Civil -o BV-8, com capacidade para 2.000 pessoas, abriga 1.985, e o Janokoida, no qual cabem 400, tem 497 indígenas.
"Infelizmente o processo de resolução de documentação e de casos de atendimento humanitários mais graves não está compatível com a grande demanda", afirma Wellthon Leal, assessor de monitoramento da Cáritas, organização católica que apoia refugiados.
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) citou a situação de Pacaraima recentemente para criticar o regime do ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, e elogiar o acolhimento oferecido pelo Brasil. "Vou, nas próximas semanas, para Pacaraima, em Roraima, para mostrar as mulheres chegando ali, fugindo da ditadura, com filho na barriga, dois ou três no braço, fugindo da fome, da miséria e da ditadura."
Ele também afirmou que as mulheres, "ao longo do caminho a pé, se prostituem para poder se alimentar". "Isso está acontecendo em um dos países mais ricos do mundo, a Venezuela."
A Secretaria de Comunicação do governo, na esteira das declarações do presidente, vem veiculando campanhas nas redes sociais com o mote "Operação Acolhida, o socialismo segrega, o Brasil acolhe". Bolsonaro deve ir a Roraima no dia 29 de setembro.
Segundo o Acnur, a agência da ONU para refugiados, o aumento na quantidade de migrantes e refugiados venezuelanos vivendo nas ruas deve-se a dois motivos: a demanda represada após meses de fronteira fechada, e o fato de a Operação Acolhida e seus parceiros estarem com equipes reduzidas durante a pandemia de coronavírus. Agora, afirma a Casa Civil, elas estão sendo gradualmente ampliadas.
A fronteira foi fechada para a entrada de migrantes e solicitantes de refúgio venezuelanos em março de 2020, com portarias que alegavam motivos sanitários devido à crise da Covid. Assim, venezuelanos ficaram proibidos de entrar por terra, e os que entrassem de forma irregular estavam sujeitos a deportação sumária, medida que viola os tratados internacionais de refúgio.
A decisão só foi revogada em 23 de junho deste ano. Nesse período, todos que entravam de maneira ilegal, pelas chamadas "trochas", estavam proibidos de solicitar refúgio, segundo o governo brasileiro.
Agora, a fronteira está aberta do lado brasileiro, mas não no da Venezuela. Por isso, segundo venezuelanos em Pacaraima, militares do país exigem entre US$ 50 e US$ 100 (R$ 262 a R$ 524) para autorizar a passagem pela entrada oficial, o que faz com que muitos recorram aos caminhos irregulares.
"Entrei pelas 'trochas' porque pude pagar em reais, e foi muito mais barato. R$ 30 para vir de moto", diz Y., que estava em Boa Vista e voltou à Venezuela quando a fronteira abriu, em junho, para buscar o filho.
As mais de 2.000 pessoas que estão nas ruas de Pacaraima têm à disposição apenas 16 banheiros químicos e oito duchas, construídos pela Cáritas com financiamento da Usaid, agência americana para desenvolvimento internacional. O governo municipal, por sua vez, não oferece infraestrutura de higiene para os venezuelanos que estão fora dos abrigos.
"Nosso projeto de garantia de banheiros, chuveiros e lavagem de roupas tem suprido uma parte dessa demanda, mas não é o suficiente", diz Leal, assessor da Cáritas. "Ele nos mostra na prática que é preciso mais investimento em políticas públicas e preocupação com a questão sanitária dos migrantes, não apenas devido à pandemia do Covid-19, mas pensando no fluxo migratório que tende a se intensificar, o que impacta diretamente a saúde coletiva, seja de migrantes ou não."
Os venezuelanos desabrigados recebem senhas da Polícia Federal e esperam atendimento para se regularizarem, com pedido de refúgio ou autorização de residência. A prioridade é para as pessoas que entram pela fronteira oficial, atendidas de imediato. Já os venezuelanos que chegam pelas "trochas" enfrentam filas. São atendidas apenas 300 pessoas por dia em Pacaraima, e 300 em Boa Vista.
De Pacaraima, os refugiados e migrantes vão para abrigos em Boa Vista, capital de Roraima, e alguns entram no programa de interiorização, que os envia para outros estados brasileiros.
O barbeiro Luis Miguel Marcano, 23, veio do estado venezuelano de Monagas, a cerca de 750 km de Pacaraima, com a mulher, Maria Orfeli, 22, os filhos, Miguel Angel, 1, e Rosmary, 4, e o cunhado, também barbeiro. Demoraram dois dias para chegar ao município brasileiro.
Percorreram o primeiro trecho de ônibus e depois pagaram US$ 10 a um caminhoneiro para levá-los à fronteira. O motorista, porém, pediu que eles descessem para ele arrumar o veículo e foi embora. Eles então tiveram de andar seis quilômetros sob sol forte até conseguirem uma carona.
No Brasil, Maria Orfeli e os filhos conseguiram uma vaga no abrigo da irmã Ana Maria, que acolhe mulheres e crianças. Marcano, por sua vez, está há 16 dias na rua, debaixo da marquise de uma loja. Usa as duchas da Cáritas e corta cabelo para sobreviver. "Corto por R$ 5, R$ 15, quanto puderem pagar", diz ele, que espera a conclusão do processo de interiorização para deixar Pacaraima com a família. "Não reclamo de dormir na rua, daqui a pouco vamos seguir viagem e conseguir um emprego."
De acordo com Elena Graglia, coordenadora médica do projeto da ONG Médicos Sem Fronteiras em Roraima, muitos migrantes andam durante dias na Venezuela até conseguirem cruzar a fronteira. Chegam com queimaduras, e, em razão das condições sanitárias, muitos têm escabiose, doença de pele contagiosa que provoca muita coceira. "Outro problema é que muitas pessoas têm doenças crônicas, como câncer e diabetes, não conseguiram encontrar atendimento médico na Venezuela e ficaram impedidas de vir ao Brasil durante o período em que a fronteira estava fechada", afirma ela.
O MSF vai duas vezes por mês a Pacaraima, onde atua em abrigos, como o da irmã Ana Maria, em ocupações e nas ruas. O volume cresceu tanto que a ONG planeja fazer atendimentos semanais.
Desde o início da crise política e econômica na Venezuela, cerca de 5,4 milhões de cidadãos deixaram o país. Segundo o dado mais recente da R4V, plataforma que reúne organizações da sociedade civil e da ONU para imigração, há 261.441 refugiados e migrantes venezuelanos no Brasil.
Os números elevados em municípios próximos à fronteira entre os países já geraram confrontos. Em agosto de 2018, nas ruas de Pacaraima, grupos perseguiram venezuelanos e queimaram seus pertences após um comerciante local levar uma surra durante uma tentativa de assalto. Agredidos com pedaços de pau, os refugiados foram expulsos das tendas que ocupavam.
De acordo com a Polícia Federal, 184.659 venezuelanos entraram no Brasil em 2018, e 193.150, em 2019. No ano seguinte, com a pandemia e as restrições impostas, esse número despencou para 32.823. Agora, em 2021, até o início de setembro, foram 15.726, mas a cifra pode ser maior, já que, com o fechamento da fronteira, muitos migrantes entraram e não foram se regularizar, com medo de serem deportados.
A revogação do fechamento da fronteira fez com que o número mensal de entradas de venezuelanos registradas pela polícia saltasse de sete, em maio, para 6.763, em agosto.
Questionado sobre os preparativos para a visita de Bolsonaro, o prefeito de Pacaraima, Juliano Torquato (Republicanos), afirmou por mensagem que pretende "mostrar a realidade vivida pela nossa população, sem mascarar tal realidade, de modo que haja mais sensibilidade do governo federal no que tange a segurança na fronteira, a fluidez da interiorização e demais temas pertinentes a imigração".
A OIM informou que estava interiorizando, em média, 1.700 venezuelanos por mês -número que saltou para 2.443 em agosto e deve ficar entre 2.400 e 2.800 mensais até o fim do ano. Segundo a Casa Civil, 22.228 venezuelanos foram interiorizados em 2019; 19.389 em 2020 e 12.126 em 2021.
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