Tarcísio de Freitas, agora 'traidor', terá elo com bolsonarismo testado
Tarcísio se distanciou da quase unanimidade na direita em torno de seu nome para a sucessão de Lula
O azedar das relações entre Tarcísio de Freitas (Republicanos) e a direita alinhada ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que deixa incerto o apoio do segmento à gestão do governador de São Paulo e aos planos eleitorais dele para 2026, vem sendo ilustrado nos bastidores com uma metáfora.
No resumo de um expoente desse campo, é como ter em casa um vaso de cristal que trincou: não significa que ele será jogado no lixo, mas se sabe que nunca mais voltará a ser como era.
Tarcísio, que se estranhou com o padrinho político ao divergir dele e defender a aprovação da Reforma Tributária, é o mais novo político a ganhar do bolsonarismo a pecha de traidor. A maldição já se abateu sobre o ex-governador João Doria e a ex-deputada federal Joice Hasselmann, por exemplo.
No caso do atual governador, o rótulo embute um potencial danoso inferior ao que afetou os dois ex-aliados convertidos em opositores de Bolsonaro, mas traz obstáculos adicionais ao trabalho dele como gestor e à candidatura na próxima eleição, segundo avaliações do universo político.
Com o embate, Tarcísio se distanciou da quase unanimidade na direita em torno de seu nome para a sucessão de Lula (PT), dada a inelegibilidade de Bolsonaro. O titular do Palácio dos Bandeirantes admite apenas disputar a reeleição, numa tática para dissipar a pressão antecipada por voos mais altos.
Sendo ele candidato à recondução ou ao Planalto, a ordem natural era gozar do endosso da ala mais ideológica do bolsonarismo, somada às parcelas da direita e do centro político que vêm recebendo acenos dele desde sua chegada à cadeira, no início do ano. Hoje, isso já não é tão certo.
Na prática, o novo cenário pode significar entraves na aprovação de projetos na Assembleia Legislativa, onde deputados bolsonaristas remoem mágoas agora escancaradas com o governador, e exigirá adaptações de discurso para evitar que a base política e social seja implodida.
A leitura de políticos e observadores ouvidos pela Folha é a de que Tarcísio adquiriu envergadura a ponto de poder prescindir do bolsonarismo militante nas eleições. Ao buscar equilíbrio e se afastar de posições extremistas, atraiu a simpatia de eleitores que navegam da centro-direita à centro-esquerda.
Por isso, amargar uma derrocada como a dos outrora "traidores" Doria e Joice estaria descartado. Em pesquisa Datafolha de abril, a gestão Tarcísio foi avaliada como ótima ou boa por 44% da população, como regular por 39% e como ruim ou péssima por 11%.
"Ele saiu muito grande do debate da Reforma Tributária", diz Luiz Felipe D'Avila, que concorreu à Presidência pelo Novo em 2022. "Trabalhou para aperfeiçoar o texto em vez de unicamente atacá-lo, conciliou visões antagônicas e tratou o tema como uma questão de Estado, não política."
Na lógica de atores que cogitam Tarcísio como opção para aglutinar o antipetismo na próxima corrida presidencial, o governador acertou ao contrariar Bolsonaro e seu séquito na Câmara dos Deputados –hoje empenhados em não sucumbir ao isolamento e à inexpressividade política.
A ala barulhenta da direita, contudo, buscou dar demonstrações de força no embate entre criador e criatura. O racha ficou evidente não só na já célebre reunião do PL em Brasília na qual Bolsonaro chegou a atravessar seu ex-ministro, que tentava discursar entre interrupções e palavras de ordem.
No próprio secretariado de Tarcísio há esforços para baixar a temperatura do confronto e creditar a celeuma a uma minoria radical.
Nas redes, nomes como o deputado federal Ricardo Salles (PL-SP) e o estadual Gil Diniz (PL-SP) expuseram críticas a Tarcísio antes restritas a conversas fechadas, inflamando também a militância. As queixas, basicamente, são a de que ele rejeita o grupo e vacila na fidelidade a Bolsonaro.
Aí entra a analogia com o vaso de cristal. As insatisfações existem, mas não necessariamente Tarcísio será abandonado. Se for a única opção da direita para o Bandeirantes ou o Planalto, e Bolsonaro der sua bênção, ele poderá ser novamente abraçado –mas também precisará dar contrapartidas.
"Tenho convicção de que eles sairão ainda mais unidos e fortalecidos dessa história, para frustração da esquerda", diz a deputada federal Rosana Valle (PL-SP) ao minimizar a rusga, que para ela "está sendo potencializada pelos opositores" com a intenção de afastar e enfraquecer a dupla.
Os dois conversaram após a crise pública e, segundo interlocutores, combinaram de passar uma borracha no acontecido, por impossível que isso seja. Não interessa a nenhum dos dois neste momento um rompimento, embora a relação deles saia inegavelmente estremecida.
Com o imbróglio, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), ampliou a movimentação com vistas a se cacifar como presidenciável e eventual herdeiro do espólio bolsonarista.
A avaliação entre os entusiastas de Tarcísio é que ele reúne várias características desejáveis para capitanear a direita nacional em 2026, tendo ou não o suporte de Bolsonaro. Ao mesmo tempo, bastaria um pedido de trégua do ex-presidente a seus admiradores para as críticas cessarem.
Líder da bancada PT/PC do B/PV na Assembleia, Paulo Fiorilo (PT-SP) diz que a dificuldade do governador na Casa pode se ampliar. "Já havia uma insatisfação de uma parte dos bolsonaristas, que pode ter um motivo a mais para fazer boicote ou obstrução a pautas de interesse do governo."
Fiorilo lembra que propostas cruciais para Tarcísio, como a privatização da Sabesp e a reforma administrativa, enfrentarão obstáculos e podem ter uma tramitação demorada. Se a ala bolsonarista do PL impuser dificuldades, o governo terá que garimpar apoios em outros partidos.
Concretamente, no entanto, soa improvável que parlamentares eleitos com bandeiras liberais na economia contrariem seus eleitores e votem contra medidas da área.
Fiorilo concorda com a ideia de que o governador saiu da discussão da Reforma Tributária com um ganho de imagem. "O grande derrotado nessa votação foi o Bolsonaro, que só falou e foi incapaz de ser o grande articulador [da oposição], abrindo margem para o Tarcísio fazer esse papel."
Há impressão semelhante mesmo na direita, com representantes desse espectro afirmando que a postura do governador no caso reforçou sua jornada rumo ao centro, o que o deixa confortável eleitoralmente, em âmbito estadual ou nacional, caso eventualmente seja abandonado pelo bolsonarismo.
Um ex-colega de Esplanada dos Ministérios, falando sob condição de anonimato, diz que a revolta está restrita à chamada ala radical e que desde o início do mandato Tarcísio está sob a mira de bolsonaristas descontentes com o espaço para o grupo, mas vem contornando o fogo amigo.
Ainda segundo esse ex-ministro, a discussão das regras tributárias fez o governador ganhar pontos com a classe média, ao passo que Bolsonaro se descolou dela. Isso seria resultado do jeito diferente de governar, o que não o impediria de demonstrar gratidão ao ex-chefe, como vem fazendo.
"Sempre tive uma lealdade muito grande [a Bolsonaro]. Os pontos sobre reforma eu tinha colocado antes para ele e tá tudo bem. Conversamos e sempre serei leal ao presidente, sempre serei grato ao presidente. Se eu estou aqui, eu devo a ele", disse Tarcísio neste domingo (9).
"Críticas na vida pública são comuns", diz o deputado estadual Guto Zacarias (União Brasil-SP), que é vice-líder do governo e vê saldo positivo para Tarcísio com a Reforma Tributária. "Prefiro admirar quem levantou, colocou a mão na massa, queimou popularidade e ajudou a melhorar o sistema."
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