Como IBGE e legislação eleitoral entendem pluralidade étnico-racial na política?
À luz do Censo Demográfico, nos dias de hoje, qualquer cidadão pode se declarar como pertencente a pelo menos uma das cinco categorias de cor ou raça
Segunda-feira (12), por volta de meio-dia, o espectador baiano que ligou a televisão para assistir a primeira sabatina promovida pela TV Bahia com os candidatos ao governo do estado se deparou com uma situação que repercutiu durante a semana e pautou as discussões sobre a questão racial nas redes sociais.
O primeiro convidado, escolhido para estreia do formato a partir de sorteio, foi o postulante ao Palácio de Ondina pelo União Brasil, Antônio Carlos Magalhães Neto. Naquela edição do telejornal uma série de assuntos foi colocada em pauta pelos dois entrevistadores, Jéssica Senra e Vanderson Nascimento. Até que, em dado momento, Nascimento o questionou sobre sua autodeclaração racial perante a Justiça Eleitoral.
"Pela primeira vez na história do nosso país, segundo o TSE [Tribunal Superior Eleitoral], os candidatos negros superaram os brancos. O senhor e a sua vice [Ana Coelho] ajudaram nesses números", iniciou o jornalista. Que logo depois continuou: "O senhor, apesar de se declarar como pardo, não é lido socialmente como uma pessoa negra. Não acha que vale uma reflexão, candidato, já que isso pode distorcer, por exemplo, políticas públicas eleitorais?".
O tom da resposta dada pelo político foi de dúvida sobre a leitura que lhe é feita e logo depois desafiou os demais a comprovarem sua condição. "Eu me considero pardo, você pode me colocar ao lado de uma pessoa branca, há uma diferença bem grande. Negro não", disparou ACM, refutando o enquadramento.
MAS COMO CONSIDERA O IBGE?
À luz do Censo Demográfico, nos dias de hoje, qualquer cidadão pode se declarar como pertencente a pelo menos uma das cinco categorias de cor ou raça consideradas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Branca, preta, amarela, parda ou indígena. Nessa ordem, estas são as opções apresentadas pelos agentes do órgão aos entrevistados para entender a fotografia da população brasileira.
No entanto, por motivos outros, no cotidiano, não é difícil escutar termos informais que tentam dar conta - mesmo que de forma pouco usual - da dimensão das identidades raciais no Brasil. Segundo a instituição, nenhuma das pesquisas realizadas leva em conta a categoria ou o conceito de "negro", mesmo que a legislação vigente para a reserva de vagas em concursos públicos e para execução de outras políticas afirmativas entenda a soma de pretos e pardos dessa maneira.
"O IBGE não tem nenhuma relação com autodeclarações para nenhum fim, seja para candidaturas eleitorais ou para acesso às cotas. Ele se envolve na autodeclaração quando ele faz suas próprias pesquisas", afirma Mariana Viveiros, supervisora de disseminação de informações do instituto na Bahia.
Desse modo, não há qualquer orientação para as pessoas abordadas - cidadãos ou políticos - sobre a maneira como elas se afirmam. "O que a pessoa diz é o que vale", justifica a responsável pela gestão de conteúdos do IBGE. A aplicação dos questionários é feita através de perguntas categorizadas, em que as opções são dadas.
AS CINCO CATEGORIAS DO CENSO
Algumas das categorias sempre existiram, com algumas alterações, desde que o órgão federal começou a fazer o Censo, em 1940. A categoria indígena é que só vai entrar em 1991. Na década de 1960, de acordo com a representante, a categoria preto sai do Censo, mas retorna logo depois. "Na primeira metade dos anos 2000 foi feito um estudo para tentar avaliar essas categorias, se precisava mudar ou não. Chegou-se à conclusão de que deveria manter, que ainda não havia uma solução melhor do que essa", descreve Mariana Viveiros.
Em 1976, de maneira aberta, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística já havia buscado saber qual a composição adequada da população do país. Foram identificadas naquela época, pela boca do brasileiro, 136 cores distintas.
A supervisora argumenta que a não utilização da terminologia "negro" nas consultas executadas acontece "porque ser ou não negro vai além da questão da cor da pele", mas por noções, subjetivas, de pertencimento e de descendência que não são contempladas pelas suas pesquisas.
AS DIFERENÇAS RACIAIS NO BRASIL
O antropólogo Diogo Linhares, pesquisador no campo dos estudos das relações raciais, vai além e esclarece que "as identidades raciais são categorias construídas". "No Brasil, assim como em qualquer lugar no mundo, a autoidentificação de grupos étnicos acontece no contato, na experiência de vida com outros grupos. A intersecção de um grupo com o outro vai produzir a autoidentificação, que acaba distinguindo as diferenças entre um grupo A com o grupo B".
O caso brasileiro, como resgata o estudioso, possui um histórico em que essas diferenças foram usadas como marcadores no contexto político e econômico, na exploração do trabalho de indígenas, negros e negras: "Foi um fator determinante, produziu profundas desigualdades". Portanto, ressalta ele, pensar nas questões raciais em nosso território também vai passar por questões políticas.
E a própria estrutura é bastante problemática. Ela tem pilares no chamado "racismo de marca", próprio do Brasil, e que usa da aparência, da cor de pele, como um fator preponderante para a existência do preconceito racial. O termo, alcunhado pelo sociólogo Oracy Nogueira, difere esse tipo de opressão da categoria "de origem", existente nos Estados Unidos e que reside na descendência do indivíduo.
A experiência do IBGE em aferir a o perfil demográfico da população, inclusive, está embebida numa construção. Na história das consultas domiciliares feitas pelo instituto, o uso de expressões como "mulato", "moreno-jambo", "moreno-canela" e um sem número de outros termos com gênese e sentido baseados na hierarquização racial pelos entrevistados revelou um dado interessante, segundo Diogo Linhares.
"O que se foi analisado é que essas pessoas, que usavam esses termos para se identificar, faziam parte de um mesmo estrato, que era o grupo de pessoas negras ou indígenas", ressalta. A partir dessas considerações explanadas pelo entrevistado, o movimento negro entrou cumprindo o papel de construir, no imaginário social, um pensamento político de negro e negra, entendendo também a ideia de que pretos e pardos como membros de um mesmo grupo.
Com isso, o termo pardo pode definir uma miscigenação, tanto de origem preta quanto indígena, com qualquer outra cor ou raça. A definição desta categoria já era um embróglio discursivo-político e se acentua com a chegada das ações afirmativas.
Na visão de Diogo, o reconhecimento individual desse ou daquele indivíduo como parte de um estrato social é proveniente de uma experiência vivida e tem as expressões de violência como ponto de partida. "É uma autoidentificação porque é uma forma de violência atribuir uma identidade a outra pessoa", reconhece o atropólogo.
A trajetória dessa violência, seja com o próprio declarante ou com a família, são balizadores considerados nas relações vistas na sociedade. "O que a gente pode entender como importante é como essas relações de parentalidade aparecem como um fator, principalmente quando há algum tipo de questionamento sobre a veracidade daquela autodeclaração", acrescenta.
O acionamento de uma identidade racial passa a ser importante, como já dito, em situações em que o acesso a direitos é negado, na ocorrência de conflitos, na reclamação da territorialidade de grupos étnicos ou até na quebra de privilégios.
COMO FUNCIONA ISSO NO ÂMBITO JURÍDICO?
Do ponto de vista jurídico, pretos e pardos são considerados negros. É o que explica a advogada Lorena Pacheco, membra da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Bahia (OAB-BA). Segundo ela, essa é a compreensão para a aplicação de políticas públicas.
"Dentro do sistema de justiça, não só eleitoral, pretos e pardos são pessoas do grupo étnico negro. Isso vem também porque o Supremo declarou a constitucionalidade da Lei Federal 12.990/2014 (que garante a reserva de vagas), a autodeclaração, mas é a partir de critérios de heteroidentificação", aponta.
A heteoridentificação elencada nada mais é uma terminologia que descreve o processo de identificação étnico-racial de uma pessoa a partir da percepção social de outra. As bancas de aferição racial são algumas ferramentas que dão conta desse modelo de avaliação. Esse formato, porém, não existe na estrutura que julga o registro de candidaturas ou no interior das legendas.
Segundo Lorena, a aplicabilidade do entendimento de negritude na execução de ações afirmativas não difere da maneira que isso acontece na jusisprudência que rege o pleito, sendo levada em conta pelos partidos na hora em que são provocadas as estratégias de garantia de equidade no processo político, como na distribuição dos recursos financeiros especiais para campanhas.
"Quando a Justiça Eleitoral encara que há a necessidade de diversificar o quadro de seus representantes, incluindo mulheres e pessoas negras, fazendo uma avaliação, tanto da quantidade de candidaturas quanto da maneira que o fundo partidário era repassado, se propõe uma política para garantir que essa diversidade chegue para essas pessoas", salienta.
Em 2020, o ministro Ricardo Lewandowski fixou orientações sobre a distribuição proporcional das verbas do chamado Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). Entre os critérios estão o de que os fundos eleitoral e partidário devem ser divididos primeiramente entre homens e mulheres, para depois, dentro de cada grupo, serem repassados aos políticos autodeclarados negros, observada a obrigatoriedade mínima de 30% a candidaturas femininas.
Apesar de não haver uma aferição propriamente dita, durante o julgamento de pedidos de registro junto ao TSE são observados documentos enviados pelos candidatos e há também uma análise judicial dos políticos. Autodeclarações atestadamente falseadas ou fraudulentas podem dar causa a um pedido de impugnação.
"É um processo novo. Estamos na segunda eleição em que há esse Fundo Especial de Financiamento de Campanha específico para candidaturas negras e de mulheres", diz Lorena Pacheco, exemplificando que em alguns casos em que houve um questionamento público popular ou judicial, explicações foram requeridas pela Justiça.
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