Artigo: A mentira, a bomba fake e a vida na "civilização"
As sociedades em que vivemos não são "dadas" pela natureza
Gabriel Andrade de Salles Maia*
O que eu escrevo a partir deste momento tenta unificar a teoria política, a filosofia jurídica, a sociologia e a psicologia freudiana numa improvável "mistura do Brasil com o Egito". Certamente não tenho o "charme pra dançar bonito" de Carla Perez, Scheila Carvalho e "Jacaré", mas vou "rebolar" ao meu próprio modo para tentar reduzir a complexidade das ideias que desejo apresentar ao público não especializado. Dizem que "mentir é feio" e que a mentira tem "perna curta". No entanto, o que não é dito de modo muito consciente são as razões que explicam aquelas "deformidades".
O problema não reside exatamente na agressão realizada pela mentira a algum tipo de moralidade privada ou coletiva específica, mas sendo a mentira uma espécie de "vício" oposto à "virtude", a sua nocividade gradualmente destrói a verdade, dissolve os laços de confiança que mantêm os indivíduos unidos e apaga os "sentidos" que nos orientam na realidade. Estes, os verdadeiros problemas identificados por Hannah Arendt em "As Origens do Totalitarismo" e "A Mentira na Política", são particularmente gravosos ao penetrarem na esfera pública das comunidades políticas maduras - caso do Brasil. Nascemos em um mundo que nos antecede e por não nos desenvolvermos como seres isolados em uma ilha deserta ou como uma fera selvagem em uma floresta tropical (tal qual o personagem de Tom Hanks no filme "Náufrago" ou como Mogli "o menino lobo") compartilhamos socialmente o mundo com outros indivíduos até o limite de nossa vida orgânica.
Ocorre que as sociedades em que vivemos não são "dadas" pela natureza, não brotam como a folha de um feijãozinho plantado no algodão à base de água, sol e "amor", ou seja, elas são construções artificiais que dependem de uma esforçada e ordenada ação humana para seguirem uma marcha rumo ao futuro. Convertida em linguagem filosoficamente rigorosa este argumento é expressão conceitual da hipótese fundamental da "sociabilidade" humana tratada por Aristóteles na "Política" e abordada muito posteriormente por medievais como "Tomás de Aquino" na "Summa Teológica".
Viver em sociedade traz a exigência ética de avaliar, argumentar e deliberar racionalmente sobre o conveniente e o nocivo, o justo e o injusto. Quanto mais entramos em contato com aqueles que nos são diferentes compartilhando as nossas experiências e subjetividade (em um movimento de "ir e vir" recíproco), maiores os desafios àquela exigência ética. É deste, e não por outro modo, que o estabelecimento do modelo de vida política mais "excelente" torna-se realizável. Esta é uma razão que me faz pensar o lema Positivista de "Ordem e Progresso" inscrito em nossa bandeira nacional não apenas como um movimento em direção ao aperfeiçoamento material das instituições políticas, jurídicas e econômicas, mas como um movimento que abrange o aperfeiçoamento ético daquelas e de nós mesmos como seus arquitetos e operadores.
Em termos políticos, a vida social é complexa e difícil porque exige o abandono de um padrão de comportamento egoístico, impulsivo, agressivo, autoritário, competitivo e destrutivo (características que Thomas Hobbes identifica em "Leviatã" e "Do Cidadão" como pertencente aos Homens em um hipotético "estado de natureza" – situação de isolamento e guerra de "todos contra todos" em que o "homem é o lobo do homem").
Embora John Locke, em seu "Segundo Tratado sobre o Governo Civil", refute aquelas inclinações como necessárias à "natureza humana", as conclusões a respeito do "estado de natureza" são igualmente pouco animadoras na medida em que tal estado seria "ineficiente" e dificultaria a elaboração de empreendimentos comuns que permitem incrementos significativos em nossa existência (como a invenção das caravelas – que permitiram a chegada em outros continentes e a prova definitiva da "redondeza" do planeta – ou das vacinas – desenvolvidas para a proteção contra infecções e doenças posteriores).
Psicologicamente, ingressar na "civilização" ou "cultura" (expressão escolhida por Sigmund Freud) representa um momento de limitação do princípio do prazer" pelo "princípio da realidade" – o que gera como consequência certa "irritação" e sensação de "mal-estar". Trocando em miúdos: a plenitude da vida na "civilização" não é possível sem uma voluntária e consciente decisão humana de abandonar a "infância" (os comportamentos que visam à satisfação do próprio "ego" sem dar atenção aos comportamentos coletivamente considerados como "aceitáveis") para que a etapa de "maioridade" seja alcançada (momento em que a sociedade passa a atender àquelas demandas "egoístas" a partir de mecanismos realistas e socialmente adequados que consideram os motivos e consequências das ações). Por exemplo? As autoridades públicas detentoras do poder político que tentarem tiranizar contra os cidadãos terão seus atos arbitrários limitados juridicamente e politicamente pelas instituições democráticas.
A vida em sociedades pluralistas, democráticas e regidas pelo Estado é muito pouco compatível com comunicações e ações que utilizem subterfúgios e instrumentos com o exclusivo objetivo de impor uma ideia ou vencer um debate a qualquer custo sem a apresentação de razões publicamente reconhecidas pela comunidade (casos da mentira e da violência – verbal, física, psicológica). Viver em sociedade é não apenas viver segundo o "império da lei", mas sobre o "império das regras" (em sentido amplo) porque são estas regras (de etiqueta, de cordialidade etc) que nos permitem a previsibilidade geral dos comportamentos, a estabilização das expectativas e a manutenção da confiança (tendo razão, então, sociólogos como Jürgen Habermas e Niklas Luhmann – respectivamente em "Técnica e Ciência como Ideologia" e "Confiança: Um mecanismo de redução da complexidade social".
Em um tempo histórico de complexidade cultural dificilmente conseguiremos agir sem estarmos submetidos ao risco de realizarmos escolhas com base em informações e avaliações equivocadas ou falsas da realidade. No entanto, a institucionalização pública da mentira e sua instrumentalização político-partidária pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro produziu nos últimos quatro anos consequências apodrecidas observadas até o presente sob a forma de diversos "negacionismos" (da ciência, de reconhecimento das minorias, do processo democrático) que comprometeram a avaliação da realidade e a ação nela.
A massificação sistemática da mentira pode ter gerado a enganosa sensação de segurança e proteção para certos grupos (enganosa porque a mentira apenas confirmou os preconceitos internos dos mesmos), mas manteve muitos aprisionadas em mundos delirantes e assombradas por fantasmas ficcionais (como o fantasma do "comunismo", da "Venezuelização" do Brasil, da fraude eleitoral) deixando-os incapazes de "retornar para a realidade" (seja por razões psicológicas – uma incapacidade de abandono dos comportamentos egoístas infantilizados destacados por Freud – seja por razões policiais – uma incapacidade de realizar aquela exigência ética de sociabilidade tratada por Aristóteles).
A institucionalização pública da mentira criou na mente dos bolsonaristas mais extremados a falaciosa ideia de perfectibilidade moral em torno do "Mito" e das causas que o mesmo defende polarizando um gigantesco contingente populacional num extremado processo de "fascização" da política e da vida pública que perigosamente cristaliza a lógica maniqueísta do nós contra eles. A tentativa de atendado à bomba em Brasília em 25 de janeiro de 2022, os ataques aos poderes instituídos no dia 08 de janeiro de 2023 e a despudorada instalação de um simulacro de bomba em um viaduto de nossa "Princesinha do Sertão" apenas são os "elos" mais recentes de uma longa "cadeia" de condutas totalitárias e muito próximas da barbárie.
Explicado os porquês por detrás do problema da mentira, as conclusões a que chegamos podem parecer um tanto óbvias. Porém, conforme lamentava o poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht, vivemos a irritante e lamentável tristeza de ter de repetir e "defender o óbvio" em nosso tempo (defesa que, talvez, seja até mesmo uma obrigação "moral e cívica" para os verdadeiros patriotas).
* Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), professor de Direito pelas faculdades UniNassau e Estácio, assessor jurídico no Hospital Clériston Andrade.
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