Enem resistiu, avaliam servidores do Inep, organizadora do exame
Desde 2019 houve tentativas de interferir no conteúdo da prova
Servidores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), órgão do governo que realiza o Enem, têm comemorado nos bastidores a amplitude de temas abordados na prova de 2022. Para eles, o exame resistiu às investidas ideológicas do atual governo .
Temas como povos originários, garantia de direitos, questões ligadas a gênero, presentes no exame deste domingo (13), são alvos históricos de Bolsonaro, cuja equipe fez esforços para banir abordagens como essas.
Sob condição de anonimato, servidores do Inep disseram à Folha que ter conseguido pautar na prova temas importantes para o debate social é demonstração de força da área técnica do órgão, apesar de ataques do atual governo.
No primeiro dia do Enem de 2022, os participantes encontraram questões sobre desigualdades educacionais na pandemia, feminicídio, direito à moradia, e tiveram que escrever um texto com o tema "desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil".
A redação do Enem abordou temática em que Bolsonaro é fortemente criticado por sua omissão e ataques, inclusive internacionalmente. O presidente já comparou quilombolas a animais e tem um histórico de críticas a demarcações de terras indígenas –seu governo não avançou nem um centímetro nesse desafio.
Desde 1998, quando o Enem foi criado, é tradicional a abordagem de temas de direitos humanos na redação. A partir de 2009 o Enem passou a ser usado como vestibular por praticamente todas as universidades federais.
Por questões de segurança, o ministro da Educação não viu o tema da redação antes do início da prova –foi o ministro, Victor Godoy Veiga, quem o divulgou publicamente após o início da prova. Bolsonaro também não teve acesso ao conteúdo desde que assumiu o governo, segundo relatos.
O Inep passou por forte pressão ideológica no governo Bolsonaro, inclusive com movimentos para censurar conteúdos no Enem. O órgão já está em seu quinto presidente neste governo.
Depois de uma sequência de pessoas distantes do debate educacional e de avaliação no comando do instituto, o Inep tem desde julho deste ano um dos servidores mais respeitados em seu comando: Carlos Moreno. A chegada de Moreno foi comemorada internamente e, para servidores, sua atuação foi importante para respaldar a realização da prova deste ano.
Funcionários relatam que a condução de Moreno no Inep é à altura de um novo governo, distante dos arroubos autoritários que marcaram a atual gestão.
Desde 2019 houve tentativas de interferir no conteúdo da prova para agradar o presidente. Uma série de questões chegou a ser apartada por motivos ideológicos no início da gestão Bolsonaro.
Perguntas sobre ditadura militar (1964-1985), por exemplo, não caem na prova desde 2019 – o que nunca tinha ocorrido até então. No Enem 2022, essa lacuna se manteve.
No ano passado, o presidente chegou a pedir ao então ministro da Educação Milton Ribeiro que o exame não falasse em golpe de 1964, mas em revolução, visão rechaçada por historiadores.
Também houve tentativa de criar uma espécie de tribunal ideológico para censurar determinados temas. O governo recuou da ideia de criar essa comissão permanente após reportagem da Folha revelar o plano.
Uma interferência maior no Enem não ocorreu muito por causa das questões técnicas e pedagógicas que rodeiam a elaboração das questões. Todos os itens devem calibrados em níveis de dificuldade antes de integrar a prova, o que dificulta alterações intempestivas no conteúdo.
Mas a atuação dos servidores foi imprescindível para que o exame não mudasse no atual governo. Ao longo da gestão, os funcionários se posicionaram contra nomeações ideológicas, promoveram atos e demissões coletivas, denunciaram assédio moral e tentativas de interferência nos critérios técnicos do Enem –além de terem enfrentado processos internos.
O governo chegou a processar um servidor que teve um artigo científico barrado em uma revista do Inep porque o trabalho mostrava resultados positivos de uma política educacional do PT. No mês passado, entretanto, o Tribunal de Contas da União (TCU) entendeu que o Inep afrontou a lei ao não publicar o texto.
O estudo do servidor Alexandre André dos Santos, ex-diretor de Avaliação da Educação Básica do Inep, foi finalmente publicado pelo Inep na última semana.
Esse contexto de pressão colabora com a reação de alívio expressada por servidores à reportagem.
Neste domingo, o presidente da Associação de Servidores do Inep (Assinep), Alexandre Retamal, distribuiu nota em que valoriza a equipe.
"Em nome dos(as) servidores(as) do Inep, manifesto nossa especial gratidão a todos que continuam acreditando em nós e no trabalho que estamos fazendo com dedicação para realizar mais um Enem dentro da normalidade. É como temos dito: 'só queremos poder fazer o nosso trabalho'", afirma o texto de Retamal.
POR FOLHAPRESS
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