Prevent Senior ocultou mortes em estudo sobre cloroquina
CPI investiga tratamentos feitos sem autorização ou informação a pacientes
O plano de saúde Prevent Senior ocultou mortes de pacientes que participaram de um estudo realizado para testar a eficácia da hidroxicloroquina, associada à azitromicina, para tratar a Covid-19, aponta um dossiê ao qual a GloboNews teve acesso.
A CPI da Covid recebeu um dossiê com uma série de denúncias de irregularidades, elaborado médicos e ex-médicos da Prevent, entre elas a de que a disseminação da cloroquina e outras medicações foi resultado de um acordo entre o governo Bolsonaro e a Prevent. Segundo o documento, o estudo foi um desdobramento do acordo.
A reportagem da Globonews teve acesso à planilha com os nomes e as informações de saúde de todos os participantes do estudo. Nove deles morreram durante a pesquisa, mas os autores só mencionaram duas mortes.
Um médico que trabalhava na Prevent e mantinha contato próximo e frequente com os diretores da operadora na época afirmou à GloboNews que o estudo foi manipulado para demonstrar a eficácia da cloroquina. Segundo ele, o resultado já estava pronto bem antes da conclusão do estudo.
Áudios, conversas em aplicativos de mensagens e dados contraditórios relativos à pesquisa - divulgados pela própria Prevent e apoiadores do estudo, como Bolsonaro – reforçam a suspeita de fraude.
A operadora informou, por nota, que "sempre atuou dentro dos parâmetros éticos e legais e, sobretudo, com muito respeito aos beneficiários" (leia mais abaixo).
Mortes escondidas
A pesquisa começou a ser feita em 25 de março. Em uma mensagem publicada em grupos de aplicativos de mensagem, o diretor da Prevent Fernando Oikawa fala pela primeira vez do estudo e orienta os subordinados a não avisar os pacientes e familiares sobre a medicação. "Iremos iniciar o protocolo de HIDROXICLOROQUINA + AZITROMICINA. Por favor, NÃO INFORMAR O PACIENTE ou FAMILIAR, (sic) sobre a medicação e nem sobre o programa."
Dos nove pacientes que morreram, seis estavam no grupo que tomou hidroxicloroquina e azitromicina. Dois estavam no grupo que não ingeriu as medicações. Há um paciente cuja tabela não informa se ingeriu ou não a medicação.
Houve, portanto, pelo menos o dobro de mortes entre os participantes que tomaram cloroquina. Para preservar as identidades, a reportagem vai mencionar apenas as iniciais, o sexo e a idade dos que morreram.
Grupo que tomou cloroquina:
- H. S., 79 anos, sexo feminino;
- H. M. P., 85 anos, sexo masculino;
- J. A. L., 62 anos, sexo masculino;
- R. A. V., 83 anos, sexo masculino;
- M. C. O., 70 anos, sexo feminino;
- F. S., 82 anos, sexo masculino.
Grupo que não tomou cloroquina:
- H. H. K., 68 anos, sexo masculino;
- L. F. R. A., 82 anos, sexo feminino,
Sem informações se ingeriu ou não cloroquina:
- D. L., 66 anos, sexo masculino.
O primeiro documento relativo ao estudo foi um pré-print divulgado em 15 de abril de 2020. Os pré-prints são a primeira versão de uma pesquisa e precisam ser revisados por outros cientistas independentes.
No artigo, o coordenador do estudo, o cardiologista Rodrigo Esper, diretor da Prevent Senior, menciona a ocorrência de apenas duas mortes no grupo que usou as medicações. Os óbitos, segundo o artigo, foram provocados por outras doenças, sem relação com o coronavírus ou com as medicações.
"Não houve efeitos colaterais graves em pacientes tratados com hidroxicloroquina mais azitromicina. Dois pacientes do grupo de tratamento morreram durante o acompanhamento; a primeira morte foi devido à síndrome coronariana aguda e a segunda morte devido a câncer metastático."
Não há, no entanto, entre as vítimas ninguém com as doenças mencionadas pelos coordenadores.
Três dias depois, em 18 de abril, o presidente Jair Bolsonaro fez uma postagem no Twitter sobre o estudo. Citando a Prevent Senior, menciona a ocorrência de cinco mortes entre os pacientes do estudo que não tomaram cloroquina e nenhum óbito entre os que ingeriram as medicações.
Segundo o CEO Fernando Parrillo, a Prevent Senior reduziu de 14 para 7 dias o tempo de uso de respiradores e divulgou hoje, às 1h40 da manhã, o complemento de um levantamento clínico feito: de um grupo de 636 pacientes acompanhados pelos médicos, 224 NÃO fizeram uso da HIDROXICLOROQUINA. Destes, 12 foram hospitalizados e 5 faleceram. Já dos 412 que optaram pelo medicamento, somente 8 foram internados e, além de não serem entubados, o número de óbitos foi ZERO. O estudo completo será publicado em breve!", escreveu Bolsonaro.
No mesmo dia 19 de abril, Esper postou uma mensagem de áudio no grupo de pesquisadores do estudo para orientá-los quanto à revisão dos dados dos pacientes. Ou seja, quatro dias depois da publicação do artigo científico com os resultados, estes mesmos resultados ainda não haviam sido revisados.
No áudio, Esper cita a mensagem do presidente sobre o estudo. Acrescenta, ainda, que os dados precisam ser "assertivos", "perfeitos", para que não haja contestação. E finaliza, argumentando que esse estudo vai "mudar o curso da medicina".
"Oi pessoal, tudo bem? É o Esper falando, tá, eu tô aqui com o (Fernando) Oikawa. Seguinte, a gente precisa revisar esses dados no máximo até amanhã, de todos os pacientes, então botei mais força aqui no grupo. Esses dados, são os dados... a gente tá revisando todos os 636 pacientes do estudo. Já tem mais ou menos uns 140 revisados, mas a gente precisa fazer a força-tarefa pra acabar isso amanhã. Só que a gente precisa olhar tudo. Se teve eletro (eletrocardiograma) ou não, se teve alteração no intervalo QT ou não, se fez swab pra Covid sim ou não. Então vamos programar uma live hoje, às 17h, com todos aqui desse grupo... O Fernandão (Oikawa) vai mandar o link aqui e aí a gente vai estabelecer os critérios e a gente vai pensar na tabela, estabelecer os critérios, e todos vão coletar os dados, e aí com umas seis pessoas, aí dá tipo 100 pacientes pra cada um, nem que a gente coloque mais gente aqui. O Fernando vai recrutar pelo menos mais dois colegas para colocar, pode ser essa colega aí do pronto-socorro, mas o dado precisa ser assertivo e perfeito porque o mundo tá olhando pra gente, tá? Esses dados vão mudar a trajetória da medicina nos próximos meses aí no mundo, tá bom? O (microbiologista francês) Didier Raoult eu entrei em contato com ele ontem, ele citou o nosso trabalho no Twitter, eu respondi ele, e então a gente precisa ser perfeito, o dado, tá? Até o presidente da República citou a gente. Esse áudio tem que ficar aqui, não pode sair. Então, vamos reunir às cinco horas hoje, numa videoconferência, todos, pra gente ajustar os parafusos e todo mundo falar a mesma língua e ter um levantamento perfeito do dado. Obrigado."
O cientista francês Didier Raoult coordenou um dos primeiros estudos no mundo sobre a cloroquina. Inicialmente, segundo os autores, a pesquisa teria indicado a eficácia da cloroquina para reduzir internações por Covid, mas o levantamento foi muito questionado pela comunidade científica. O próprio Raoult, meses depois, veio a público dizer que seu estudo não é capaz de indicar a eficácia da medicação.
O resultado do estudo da Prevent foi divulgado dias depois que outro estudo semelhante, realizado em Manaus, foi suspenso em razão da morte de pacientes que ingeriram cloroquina. A pesquisa também não encontrou evidências da eficácia da medicação. Outro estudo iniciado na época envolveu algumas das principais instituições de saúde do país, como os hospitais Albert Einstein e Sírio-Libanês, mas a conclusão também foi de que a cloroquina não é eficaz contra a Covid. Restou, portanto, apenas o estudo da Prevent.
A análise da planilha dos pacientes do estudo mostra que, dos 636 participantes, apenas 266 fizeram eletrocardiograma, que é recomendado para pacientes tratados com cloroquina, pelo risco de problemas cardíacos. Uma das pessoas que morreu, um homem de 83 anos, tomou cloroquina e apresentou arritmia cardíaca, que é um dos efeitos colaterais possíveis da medicação.
Além disso, apenas 93 pacientes (14,7% do total) realizaram teste para saber se estavam com Covid ou não. Foram 62 casos positivos, menos de 10% do total de participantes.
O estudo chegou a ser submetido à Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa) e aprovado, mas o órgão suspendeu a pesquisa por constatar que a investigação começou a ser feita antes da aprovação legal.
Até hoje, no entanto, o estudo é usado pela própria Prevent Senior para justificar a prescrição da cloroquina aos seus associados. Ao longo da CPI, foram várias as menções.
Subnotificação de mortes por Covid
Além das suspeitas que recaem sobre o estudo, há indícios de que a operadora subnotificou mortes por Covid ocorridas em suas unidades. A GloboNews conversou com outra médica que trabalhou na Prevent e afirmou que essa prática tem ocorrido desde julho de 2020.
Em uma mensagem enviada a grupos de aplicativos, outro diretor da Prevent determina aos coordenadores das unidades que alterem o código de diagnóstico (CID) dos pacientes que deram entrada com Covid-19 após algumas semanas de internação.
"Após 14 dias do início dos sintomas (pacientes de enfermaria/apto) ou 21 dias (pacientes com passagem em UTI/Leito híbrido), o CID deve ser modificado para qualquer outro exceto o B34.2 (código da Covid-19) para que possamos identificar os pacientes que já não tem mais necessidade de isolamento. Início imediato."
A justificativa é viabilizar o isolamento dos pacientes, mas a alteração do CID, segundo a médica, faz com que o diagnóstico de Covid desapareça de um eventual registro de óbito.
A GloboNews conseguiu comprovar dois casos em que a Covid foi omitida da declaração de óbito dos pacientes. O primeiro deles é de um homem que foi internado em novembro de 2020 na unidade da Prevent Senior do Itaim, Zona Sul da capital paulista. Ao dar entrada no hospital, o exame PCR deu positivo para Covid.
Os médicos, então, prescreveram as medicações do chamado kit Covid, como cloroquina, ivermectina e azitromicina. Ele já havia ingerido essas medicações antes mesmo de ser internado e voltou a recebê-las no hospital. Também foi submetido a cerca de 20 sessões de ozonioterapia.
Segundo a Conep, a ozonioterapia só pode ser feita em pesquisas experimentais por instituições credenciadas. O órgão informou que a Prevent não está credenciada.
O paciente ficou dois meses internado e morreu após ter uma hemorragia digestiva. A Covid, doença que desencadeou a morte, foi omitida da declaração de óbito dele.
O outro caso é de uma paciente que também morreu após ficar internada na Prevent Senior para tratar um quadro de Covid. Ela recebeu as medicações do kit Covid, mas o quadro não melhorou. Na declaração de óbito, a Covid também foi omitida.
Investigações
A Prevent Senior é investigada desde março pelo Ministério Público de São Paulo, que abriu um inquérito civil após uma reportagem da GloboNews mostrar 12 relatos de associados do plano que estavam recebendo o kit covid. Parte deles nem sequer tinha diagnóstico confirmado de Covid-19.
Em abril, outra reportagem da GloboNews trouxe relatos de médicos que trabalharam na operadora. Eles disseram que foram coagidos a prescrever os remédios do kit covid e que foram forçados a trabalhar enquanto estavam infectados com o novo coronavírus. Tudo isso foi incluído na investigação da promotoria.
O MP também investiga o uso de medicações sem eficácia comprovada, como flutamida, etanercepte, heparina inalatória e ozonioterapia. DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa da Polícia Civil de São Paulo) e ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) também abriram investigações.
A reportagem teve acesso a uma página usada como guia por médicos da área de telemedicina da Prevent. A página contém uma planilha atualizada com os nomes dos pacientes e as medicações recebidas. É possível ver que a cloroquina e a ivermectina continuam sendo prescritas mesmo após o Ministério da Saúde ter declarado que o medicamento não funciona, o próprio ministro Marcelo Queiroga ter desaconselhado o uso das medicações e depois de estudos amplos de meta-análise indicarem que a cloroquina pode provocar um aumento das mortes de pacientes, e não a redução.
O mesmo guia ainda mostra que a Prevent Senior continua testando outras duas medicações nos pacientes. A bicalutamida, um inibidor de hormônios masculinas, contraindicado para mulheres, e a chamada "Pílula do Açaí".
Irregularidades
A CPI da Covid recebeu já denúncias formais que afirmam que a operadora de saúde e o governo federal fizeram um acordo, no início da pandemia do coronavírus, para testar e disseminar as medicações do kit covid.
O documento cita uma série de irregularidades que, segundo os médicos, foram praticadas pela empresa, e reveladas pela GloboNews e o G1 em abril deste ano. O Ministério Público abriu investigação. A Prevent Senior afirmou, por meio de nota, que sempre atuou "dentro dos parâmetros éticos" (leia mais abaixo).
O primeiro desdobramento do acordo entre a Prevent e governo federal, segundo a denúncia, foi a pesquisa feita com mais de 600 pacientes para testar a eficácia da hidroxicloroquina contra a Covid-19, realizada entre março e abril do ano passado. O resultado teria sido manipulado para que os resultados fossem favoráveis ao uso da cloroquina contra a doença.
A denúncia afirma ainda que a Prevent realizou uma série de tratamentos experimentais em seus pacientes, muitas vezes sem que houvesse consentimento deles. O texto diz que pacientes foram usados como "cobaias humanas" para testar medicações contra a Covid.
Em nota, a Prevent diz que "sempre atuou dentro dos parâmetros éticos e legais e, sobretudo, com muito respeito aos beneficiários. Todas as dúvidas e questionamentos formulados pela CPI foram devidamente esclarecidos junto às autoridades competentes".
O que diz a Prevent Senior
Em nota, a operadora informou que "sempre atuou dentro dos parâmetros éticos e legais e, sobretudo, com muito respeito aos beneficiários. Todas as dúvidas e questionamentos formulados pela CPI foram devidamente esclarecidos junto às autoridades competentes".
Com informações do G1.
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